Secondhand Life - Tesouras
Ela adorava ficar sozinha. Algumas situações faziam com que ela se sentisse atacada por milhares de pequenas tesouras, que, enfiadas em sua cabeça, pareciam anunciar que aquilo não acabaria nunca. Como um enxame de insetos espelhados e partidos, cortando não o corpo, mas o tempo interno, um pulsar.
Precisava perder o medo da morte, mais do que se esforçava para perder o medo da vida. Levantar-se pela manhã trazia o peso de uma estrela de nêutrons: uma mísera colher de chá pesava 1 bilhão de toneladas. Cada partícula de luz que entrava pela janela soava como uma orquestra de cegos, tocando para uma pequena multidão surdos, era só mais um dia que não precisava de nome.
Preferia não se levantar. 666666
Tudo o que teve um dia lhe fora tirado. Sentia-se como um trapo, uma estopa velha e surrada, um brinquedo vagabundo, quebrado de maneira inservível depois de terem brincado tanto com ele. Tanto fazia. A textura do abandono era a sua língua mater. Cada fibra arrancada do tecido do tempo lembrava que esquecer não adiantava mais.
O desejo era de se entregar ao vazio mais profundo que conseguia imaginar, muito além de HD1... além das fronteiras, além das leis da física. Um universo invertido onde as galáxias implodiam para dentro do peito. Definido pela ciência como vácuo.
A morte parecia seguir seus passos, quase que lado a lado, numa tentativa de dar-lhe outra chance. Como um cão mitológico de três cabeças, capaz de lamber, rosnar e morder ao mesmo tempo, fazendo da foice um acalento.
As tesouras vinham uma a uma, em velocidades de impacto diferentes, e embora cada uma provocasse um ferimento distinto, de força, tamanho e profundidade diferentes, faziam parte da mesma blitzkrieg. A orquestra invisível de um absurdo sem maestro, dilacerando um ou outro pensamento, como se fossem partituras escritas com signos ilegíveis.
Um café amargo, o sopro do vento frio pela fresta, o vulto de um pensamento alheio que é visto de soslaio, tudo servia de mastro em meio ao naufrágio. Era tarde demais para se importar. Ou talvez cedo demais para aceitar que nasceu além do ponto do retorno.
Um dia, adorou ficar sozinha. Mas, por aqueles dias ficar sozinha não passava de uma tentativa de se ancorar em qualquer coisa, qualquer coisa que não a fizesse ser encontrada aos pedaços por aquelas tesouras.