Secondhand life - Sismos
Os olhares sempre convergiam para ela, nunca pela admiração, mas pelo incômodo que causava pela esquisitice.
Pra ela estava tudo bem, a fobia social a colocava em um lugar tão desagradável que nada, ou quase nada, poderia ser pior do que, comumente, já era. Apenas não ligava e o não ligar a tornava ainda mais incômoda. Não que fizesse alguma diferença estar ou não, aqui e ali, mas de vez em quando gostava de sair.
Existir fora do espaço-tempo a colocava mais perto do céu. Permitia que ela usasse e ousasse qualquer coisa que quisesse, e isso, obviamente, incomodava.
A música alta na sua cabeça fazia com que ela só escutasse o que queria ouvir. Sentia os olhares, percebia os murmurinhos, mas na sua cabeça a música sempre soava mais alto e era isso que importava, e isso, obviamente, incomodava.
Era uma figura incólume, desprovida das marcas da vida, não por falta de golpes ou estilhaços indiretos, mas por pura falta de talento para sofrer. E isso, obviamente, incomodava.
Sua existência acontecia entre hiatos, destroços divinos, parecia ter sido criada a contragosto, sendo um devir, uma espécie de aporia, um estrondo, e isso, obviamente, incomodava.
Apesar da percepção clara dos sismos, seus pés firmes no chão lhe propiciavam grande impulso para se lançar ao espaço. Suas idiossincrasias, tão plenas e bem colocadas, soavam como o pior dos palavrões, e isso, obviamente, incomodava.
Os olhares sempre convergiam para ela, menos um. O dele. Que se sentia incomodado com aquela presença que lhe fazia tremer, e tremer tudo ao seu redor com suas ondas de choque. Ela só sentia os sismos.