Ronnie e Madeleine - Fragmento 11 - Silêncios
Há um instante, fugidio, que dura não muito mais do que um piscar de olhos de soslaio entre dois silêncios, em que tudo parece suspenso: nem dor, nem paz. Um entrelugar, um lugar qualquer, um outro lugar desconhecido, um meio passo dado, onde o tédio não dorme porque a angústia, embora não grite, lhe sussurra sem parar nos ouvidos. Onde o coração ama com leveza, mas se inclina, sem saber por quê, à melancolia. Ele está ali, esse alguém, entre o que ele não consegue explicar e o que não nem tenta mais evitar, parado à beira de um poema que não consegue terminar, e de uma loucura que não confessa e que dorme ao seu lado.
Os olhos vagueiam, mas não encontra nada além de espelho. O corpo respira fundo, no fundo, no abismo mais profundo, e sobe à superfície quase desfalecido. Algo que deveria ser suave como uma brisa que refresca, o toca como um furacão repentino, que não faz alarde, e nele se instala um estado de mansidão, como se tivesse desaprendido a urgência frente o perigo. É um instante breve, e quase silencioso, mas inteiro. Um interstício entre o que foi e o que nunca mais será, onde essa alma colorida e cheia de mistérios acorda ao seu lado, se acomoda em silêncio, só para lembrar ao mundo que também existe esse tipo de tempo, esse tempo que não exige nada. Apenas sente. Ele se mistura à ela
_ Eu não aguento mais essa droga toda.
_ Você está falando da vida, da gente, do trabalho, de você mesmo, de tudo o que compreende, ou do todo além de todas as fronteiras?
_ Não aguento mais não ter resposta, não aguento mais tantas perguntas que levam a lugar nenhum, não aguento o trânsito, as pessoas pela rua que me parecem NPCs, não aguento você existindo perfeita como se nada fosse com você, como se conseguisse existir além do chão que pisa, e eu me sinto plantado, não no chão, na terra, ancorado, plantado em um tapete de material sintético, não aguento não saber o que eu quero, não aguento saber que o que eu queria não faz mais sentido, e que nada, muito além do meu querer, parece ter sentido. Eu não aguento saber que a gente vai conversar sobre isso, e depois a gente vai fingir que nada aconteceu, que a angústia não existe, e fingir que isso não é um absurdo. E você vai sentar ali na poltrona, colocar um pé no assento, apoiar seu cotovelo no joelho enquanto trança o cabelo pra um dos lados do ombro, e vai cantarolar ou assoviar aquela melodia do Satie, e eu vou morrer um pouco por dentro.
(silêncio)
_ Não vai dizer nada?
_ Não. Vou sentar ali na poltrona, apoiar meu pé sobre o assento, apoiar meu cotovelo no joelho e trançar meu cabelo.
_ Você tá doida?
_ Quem tá surtando aqui é você…
_ Eu estou angustiado.
_ Percebi. E a única coisa que eu posso fazer é te escutar. Mas acho que você não quer ser escutado, você só quer falar o quanto sente as coisas ruins, talvez pra se convencer de que é isso mesmo, e se conformar. Talvez seja seu mecanismo de adequação, de conformação, de se formatar às coisas das quais reclama. Então, é algo de você para com você mesmo. Não tenho a ver com isso. Uma pessoa que quer falar, mas não quer ser escutada, é pior do que a que não quer escutar. Porque quem não quer escutar está no seu direito. Mas o que não quer ser escutado, mas quer falar, ultrapassa o limite do outro, é como um louco colocando a mesa pro jantar, mas não quer que ninguém coma, embora queira que todos o olhem morrendo de fome.
_ Eu quero que me escute.
_ Não. Você quer que eu te assista enquanto fala.
_ Não.
_ Quer que eu seja a coadjuvante que dá a deixa vez ou outra, perguntando algo, não pra que me responda, porque tenho que fazer a pergunta certa dentro do seu discurso, apenas para que continue falando, nesse seu solilóquio sem ansiolíticos. Se você quisesse dialogar, eu iria adorar. Se você quisesse me contar como se sente, eu acharia um privilégio. Mas acho melhor você falar sobre essas coisas olhando no espelho. Porque esse eu-Madeleine, não existe nessa sua equação-monólogo.Então eu acho melhor eu trançar o meu cabelo.
_ Eu odeio quando você faz isso.
_ Ãn???
_ Esse silêncio cheio de palavras, porque você diz muito, pra explicar o seu silêncio, e esse jeito de quem parece saber mais de alguma outra coisa desconhecida, que tá aqui e eu não to sendo capaz de ver. Essa serenidade que soa arrogância diante do abismo. Eu sou todo abismo, e você senta na borda e brinca com o eco.
_ Isso sim, é quase um diálogo. Não é arrogância. É só exaustão com o ruído.
_ Mas o ruído sou eu.
_ Não. O ruído é o que você vai se tornar, porque você tá vivendo essa bosta desse existência como se ela fosse real, e não parte do real. Tem que se por pra fora, externar o real, e não o superficial.
_ Quer o que? Que eu exploda? Que eu me desintegre em voz alta?
_ Se colocar pra fora está muito mais ligado a um movimento de internalização, explosão sem substância é efeito especial apenas, explodir tem que ser supernova depois do colapso. Então se for o caso, exploda. Antes de me usar como caixa de ressonância daquilo que nem você quis entender.
(pausa curta, mas violenta)
_ Eu tô tentando não enlouquecer. Tentando com raiva, com medo, com orgulho… mas ainda assim tentando. Eu tô tentando com tudo que eu tenho.
_ E quem disse que o que você tem ainda serve? Às vezes a gente precisa se despir até do próprio eu.
_ Você fala como se a alma fosse um casaco velho que dá pra trocar.
_ Às vezes é. Às vezes a “alma” que vestimos já não nos serve mais, mas insistimos por apego ao nome que bordamos nela. Nada é imutável, a gente é disforme, a gente pode se moldar, obviamente existem coisas que são primordiais, mas a maior parte de tudo que você entende como seu, são tatuagem de chiclete.
(silêncio. ele coça o peito, como se algo latejasse sob a pele)
_ E se não tiver nada depois disso tudo? Nenhum sentido, nenhum eixo?
_ Então você vai ter que inventar. Mesmo que seja com as sobras.
_ Eu não quero ser o Deus da minha ruína.
_ Mas já é. Só ainda não percebeu que também é o único capaz de fazer sentido no meio dela. Isso não se dá de outra forma que não seja ruir. Ruir não é ruim, no final das contas, é onde sempre começamos.
(ele abaixa a cabeça. ela continua trançando o cabelo com mais delicadeza agora, como se bordasse o tempo)
_ E se o destino for só uma desculpa nobre pra nossa covardia?
_ Pode ser. Assim como o livre-arbítrio pode ser só um delírio do ego tentando se sentir importante no caos.
_ Então nada é real?
_ O que dói é real. O que paralisa é real. O que transforma… também.
(ele ri, sem humor)
_ Você devia escrever um livro sobre essa filosofia de boteco.
_ Eu escreveria se fosse de frequentar botecos, eu escrevo apenas pra sobreviver à minha própria lucidez.
(ela para por um instante, olha um fio de cabelo entre os dedos, como quem enxerga um universo dobrado)
_ A consciência é um espelho quebrado refletindo a si mesma em infinitas dimensões. Cada pedaço pensa que é único, mas todos pertencem ao mesmo vidro. É por isso que a dor ecoa tanto, porque ela reverbera em todos os fragmentos.
_ Você tá dizendo que eu não sou só eu?
_ Você é você… e todas as versões de você. Um fractal tentando lembrar que é o todo.
(ela volta a trançar o cabelo, com mais firmeza agora)
_ Tudo isso aqui é ilusão, uma ilusão com propósito, tipo fazer a centelha se lembrar de onde veio, é clichê mas é isso. A vida é uma escola holográfica, um teatro multidimensional. A angústia é só a consciência percebendo que está presa num papel menor do que ela realmente é. Coadjuvante de si, num circo geometricamente complexo.
_ Isso me assusta.
_ Deveria assustar mais continuar achando que o caos é absoluto. Até o caos tem geometria, se você souber olhar.
(ele ergue os olhos, sem foco)
_ Será que estamos mesmo conversando ou só atuando dois papéis escritos por um autor desesperado por significado?
_ Talvez sejamos só a contracena de um mesmo delírio: o de acreditar que alguém pode nos salvar de nós mesmos.
_ Você não acredita no amor?
_ Acredito. Mas o amor também enlouquece quando a alma se cala por tempo demais.
(ela para de trançar o cabelo. o silêncio muda de cor)
_ Eu queria um sentido.
_ E eu queria que querer fosse suficiente.
_ Eu não aguento mais essa droga toda.
_ Você está falando da vida, da gente, do trabalho, de você mesmo ou de tudo?
_ Deixa pra lá, vem cá, que eu tranço seu cabelo.
_ Obrigada.
_ Eu te amo tanto.
_ Eu te amo, por enquanto.
_ Eu sei.