Ronnie e Madeleine - Fragmento 09 - Correnteza
Um momento na mente barulhenta de Ronnie.
Ronnie acordou perturbado com o barulho vindo da casa do vizinho. Dos malditos vizinhos. Ele nutria um desprezo patológico por aquele tipo de pessoa.
Ela, uma mulherzinha de merda, vinda de uma longa linhagem de mulherzinhas de merda. Sem estudo e sem educação, como se o dinheiro fosse a única qualidade que merecesse reverência. Morria de vergonha da mãe ser faxineira, mas usava dos serviços dela. Porque da filha a mãe não cobrava e até se orgulhava por ser a escravinha da “mansão” da filha. Porque uma casa num terreno de 12x30, embora dora de condomínio, num bairro de emergentes, rodeado de bairros de baixa renda, era luxo pra quem sempre morou do outro lado da cerca.
Ele, um bosta de um moleque gordo e chato, que nunca realizou nada na vida, que cresceu e continuou o mesmo, só que um merda maior, tocava a loja de óculos junto com o pai na esperança de herdar alguma coisa. Estudou, e pagou a mesma faculdade merda de administração pra garota que mirou no idiota com dinheiro, mas era burro como uma porta e sabia disso. Incapaz de ler um livro ou entender uma notícia com mais de dez linhas.
Um casal de merda, ele sabia que aquela merdinha de mulher estava com ele por dinheiro. E por mais merda que o filho do comerciante fosse, era muito mais do que qualquer mulherzinha de merda da sua longa linhagem mulherzinhas de merda tinha tido na vida. Ela tinha que beber pra conseguir foder com aqueles dois metros de altura, da mais pura merda, que era a cara do pai: velho asqueroso e nojento. Todo dia era aquela mesma música de merda invadindo seu espaço, vindo daqueles imbecis que se orgulhavam de ser massa de manobra de políticos de merda. Tinham dinheiro pra serem vistos como remediados num bairro de emergentes, cujo destino havia instalado Ronnie sem seu consentimento.
“Esse tipo de gente deveria pagar imposto pra existir, deveríamos ser ressarcidos do prejuízo psicológico que nos causam, não sabem escutar essa merda de música só pra eles, tem que mostrar que gostam de pisadinha, de funk cornetinha, de sertanojo. Gente que se espalha, bando de merdas.”
Madeleine, avessa a tudo, colocou os fones de ouvido e se deitou. Ronnie acordou desse jeito, mergulhado em ódio e desprezo, assustado com o som alto que simplesmente estourou dentro de sua cabeça. Vociferando, e se pudesse destroçaria os vizinhos com os próprios dentes. Era o nojo que o impedia. Não se permitiria sequer encostar nesse “tipo de gente”, como ele dizia.
Sua cabeça variava entre um pandemônio e um paraíso. Em um momento, estava silencioso, introspectivo. Mas, em outros, era uma balbúrdia, uma bagunça, uma mistura confusa de coisas…
Antes de Madeleine, ele se sentia sozinho, mas jamais tão sozinho quanto viria a se sentir depois dela.
Havia nele uma curiosidade, um interesse pelas coisas dela, pelas suas ideias, pela sua criatividade, pela sua coragem quase obscena de ser, ela metia um “foda-se” em tudo e ainda assim parecia, com uma delicadeza que se equilibrava na tênue borda que a separava da deselegância, enxergar dentro dele, algo que só ele sabia que existia.
Do lado da lascívia, da luxúria, da loucura e do desalento, havia um cara que queria ser notado, e ela parecia notar esse cara. Quando ela falava com ele, ele sentia que ela falava com essa parte, como quem quer tirar um garoto assustado debaixo da mesa, mas só ela parecia enxergar que ele está lá.
E, para além da bagunça, o vazio. Vazio que parecia ser exatamente do tamanho dela.
Quando a viu pela primeira vez, a observou com estranheza, e na segunda como se visse uma correnteza passando, ainda que tentasse parecer silenciosa. Era como estar dentro de quadro que ele conhecia bem, Improvisação Ravina, um quadro do Kandinsky. Naquele quadro, um casal em um píer, ao lado de barcos ancorados, observava uma cachoeira caótica de cores que acontecia. E era assim que ele se sentia perante ela.
Ainda irritado, parou pra observar a calma dela, com os fones no ouvido, alheia ao desastre todo ao seu redor.
Continuou olhando e tentando compreender o que fazia dela uma pessoa interessante, se nada nela se encaixava com o que ele tinha idealizado. E ainda assim soava superlativo.
Ele tinha uma curiosidade que ia além do casual. Ela estava ali, e ainda assim ele queria examiná-la, porque ele descobria o tempo todo algo que não conhecia. Quando isso acabaria? Quando seria o dia em que ela não teria mais coisas novas para descobrir? Ela parecia tecer sua rede interna com os próprios cabelos que não paravam de crescer, ela se retroalimentava, ela era uma máquina de movimento contínuo e ainda assim caótico. Como isso poderia sequer ser possível?
Ele entendeu que aquela era uma situação perigosa demais, porque ele nunca se desapaixonaria, nem nos piores momentos, pela pura crença na mais dura das realidades. Se ele se afastasse dela, por alguma coisa que o desagradasse, no momento seguinte ela seria outra, e por essa outra ele morreria de amores, de novo.
Nem raiva ele se dava o direito de ter, mesmo nos piores embates. Ele sabia que existiam mulheres mais inteligentes, com uma fala mais adequada, com um jeito mais polido, com melhor formação, mas com aquilo que ela tinha? Ele sabia que teria que se contentar, que aceitar, que achar que estava tudo bem acreditar naquilo, se estivesse com alguém que não ela.
E ela, ela o amava, mas ela não admitiria que nada ficasse entre eles. E se algo ou alguém se colocasse naquela posição, ela sairia sem que ele percebesse e iria embora sem bater a porta, porque ele teria deixado isso acontecer.
Não que ela não se importasse, mas ela não admitia que atitudes não fossem tomadas. Escutando uma música qualquer, ela dormiu.
Observando de fora, ele sentiu que sua cabeça estava entrando naquele estado de bagunça. Era muito barulho lá dentro, muita confusão mental. Os medicamentos ajudavam, mas, quando se sentia perturbado, tudo o que ele queria era se deitar ao lado dela.
Se deitou e dormiu, como se nada o pudesse atingir. Alguma coisa fazia dela seu eu-travesseiro, onde ele podia repousar em paz, em meio a uma cachoeira caótica de cores saturadas que ele odiava. Ele queria mais dela, mas ele não tinha tanta coragem assim pra alcançar aquilo.
Ronnie perturbado com o barulho do vizinho, absorvido pelo silêncio abissal de Madeleine, que como um ruído branco invisível, abafava todos os demais barulhos do mundo, adormeceu, deixando que aquela correnteza o conduzisse. Caos.