Aqui mesmo, ele passaria despercebido. Talvez ele estivesse te olhando, bem agora e pensando que, quando criança, bastaria chegar e dizer: "Quer ser meu amigo?".
E já era.
Estaria ali, olhando tudo e todos, com um chope na mão, esperando que algo, além do nada de sempre, acontecesse.
Talvez alguém o notasse. Há muito tempo só recebia atenção de um desconhecido se estivesse atrapalhando o caminho; um toque seguido de um "Com licença" e talvez um "Obrigado", por desobstruir a passagem.
No trabalho, trabalho metódico, repetitivo, onde, quando havia uma novidade, pode ter certeza, era uma burocracia a mais.
O carinha legal da adolescência, cheio de amigos e rodeado de garotas, com as quais nunca conseguiu puxar papo (verdade seja dita), já não existia mais. Era algo entre o introvertido e o silencioso, podia ser confundido com um objeto de decoração, e, no final da noite, sozinho em seu vazio, meio entorpecido pelo álcool, iria lá no fundo questionar por que encheu a cara, sentindo que ia começar a passar mal. Já sentia sede e náuseas. A vodca sempre lhe deu dor de cabeça e uma ressaca moral daquelas. Mas naquele dia, havia apenas tomado chope.
Acredita que, de tudo que esse cara, agora aos 50, viveu, nada parecia tê-lo tocado de verdade? Ele sentia como se, no fundo, tudo tivesse sido muito raso...
..., nada o tinha acertado com a ferocidade de um búfalo em disparada. Talvez a morte recente de sua mãe. Ainda assim, esperada, aceita como a ordem natural das coisas.
Não tinha grandes histórias pra contar da infância, nada espetacular na adolescência. O casamento, os filhos e a família eram aquilo lá, nada além daquilo, era o bater cartão da vida adulta. Nunca tinha feito ou sido nada fora da curva durante toda a juventude. E agora ele sentia que tinha deixado a vida lhe levar.
Parava pra pensar e tentar identificar quais haviam sido os nodos temporais onde a vida tomou esse rumo bosta.
Isso: ele achava a vida uma grande merda. Mas, obviamente, jamais diria isso.
Sorria um sorriso de dentes tortos, torcia o canto da boca, mordia as cutículas da unha da mão direita e odiava a marca que as borrachinhas que apoiavam o óculos no nariz deixavam. Odiava a pele seca, o cabelo ficando ralo, as marcas de expressão.
Sentia-se feio, mas achava que não era tão ruim assim. Queria mais, mas não mais do mesmo de sempre.
No dia seguinte, sempre no dia seguinte a qualquer dia que tivesse sido, ele tomava seu café da manhã pensando em mudar alguma coisa na sua vida naquele dia. Mas, desde que havia adquirido esse costume, sempre aconteciam coisas que o faziam mergulhar na banalidade do "todavia mais um dia"... e os dias iam se repetindo, meio tortos, meio que mordendo o tempo pelas bordas.
Antes de sair, numa noite de sexta ou sábado, ia se vestir de vontade de ter uma noite boa, dar umas risadas, talvez, curtir um som legal, e usar sua coragem de sempre pra conseguir escolher uma roupa na qual se sentisse bem. Mas todas pareciam as mesmas de sempre, até as novas.
Seu peito era um guarda-roupa cheio de velhas emoções que ele insistia em vestir, mesmo sabendo que não serviam mais.
Vez ou outra, se lembrava de como foi estar casado e percebia que aceitaria voltar, não por amor, porque aquele amor nunca tinha servido, nunca fora do seu tamanho e nem do seu estilo.
Mas tudo bem, servia pra proteger do frio da solidão. Ele não se importava se era uma roupa meio descolorida, uma polo com a borda da gola um pouco puída. Nem dava pra perceber.
E naquela noite, bem ali no canto do bar, ele percebeu que o tempo passou. Terminou seu chope, se despediu das pessoas.
E agora está na minha frente, no café da manhã.
Me olhando entre uma cuca de maçã e a manteigueira com uma araucária desenhada. Me olhando no fundo dos olhos, da parte lateral da caixa de leite.
Ele me viu e sorriu. Sorriu e partiu. Se ele tivesse chegado e dito: "Quer ser minha amiga?"... Já era.