Coisa mais rica o cheiro de petrichor emanando do calçamento de paralelepípedos de uma rua arborizada, onde as copas das árvores, com folhinhas miúdas e caules que vencem a luta contra a calçada, formam quase um túnel, conversando com as árvores do outro lado da rua. Um ou outro ipê-rosa se exibindo, fora de época, e roseiras miudinhas enfeitando os seus pés.
Aquele céu azul de doer, de quando venta e faz frio à sombra, mas calor ao sol. O cheiro do café moído na hora, sendo embalado na fábrica local. parece música pairando no ar.
Na Pharmácia com “Ph”, o poeta, atrás do balcão, escreve um verso no papel grosseiro, áspero e rosado com o qual embrulha os medicamentos, e entrega para uma mulher, dizendo: “Um cura o corpo, o outro a alma.”
O padre que passa e acha graça na menina, a mesma que todos dizem que é uma diabinha, vestida de anjo, correndo atrás dele para ensaiar a coroação de Nossa Senhora do Patrocínio, no dia da padroeira.
O padeiro entregando pão de perua nas casas, com as portas de trás da Kombi aberta, amarradas com uma cordinha, para que o garoto da entrega possa descer e entregar os pães sem ter que ficar abrindo e fechando a porta.
O cachorro na varanda observando tudo, enquanto outro corre latindo, se fazendo de bravo atrás do carteiro que está de folga. Mas… reconhecendo seu inimigo imaginário, mesmo sem o uniforme, sai correndo bravo, abanando o rabo, até que o encontra, e ambos brincam como velhos amigos que são.
Na porta de sua lojinha, o sapateiro, sempre exibindo seus sapatos perfeitamente lustrados e bonitos, fumava seu cachimbo, enchia a paisagem com pinceladas de um cheiro ocre e adocicado. Pica-fumo era seu apelido.
As crianças no meio da quadra ainda sabem o que é uma amarelinha, e isso parece um sinal de que nem tudo está perdido. Mas está…
Foi num piscar de olhos, eu olhei de soslaio e tudo já tinha acontecido. Asfaltaram a minha rua, trocaram as árvores como se elas não tivessem direito à vida, plantaram árvores que exibem vergonhosamente suas copas quadradas, com folhas grandes e galhos engrossados por podas drásticas. As árvores só existem de um lado da calçada, o ar úmido e gostoso, agora é seco e empoeirado.
Onde havia a fábrica de café, agora existe uma franquia de cafeteria que tem um ou outro item da antiga moenda como decoração, onde servem shakes gordurosos feitos com café solúvel batido com água gelada, creme de leite e gelo, e as pessoas pagam muito mais caro do que pagavam pelo quilo de café torrado e moído na hora.
O poeta farmacêutico, sem filhos e sem família, reside esquecido (e esquecido) em um asilo da cidade. Alzheimer dizem.
O padeiro morreu, a padaria fechou, agora se compra pão no mercado: pão leve, cascudo e sem miolo.
As casas com varanda viraram comércios que poluem a vista com fachadas quadradas e mercadorias penduradas por todos os cantos.
A fidelidade dos cachorros para com seus amigos continua a mesma, mas, agora, ao invés de carteiros, seguem seus amigos sujos, maltrapilhos, desdentados e cheirando a álcool e urina, que perambulam com delírios persecutórios pela rua, deixando a todos com medo. Eles são os únicos anjos encarnados em pelo e osso por ali.
Por causa do fumo, o sapateiro desenvolveu problemas sérios de circulação. E agora, o rapaz que consertava o andar de todos por ali, me dando a impressão de ele ser uma espécie de mágico que conseguia colocar as pessoas de volta no caminho delas, sem tropeços, perdeu os pés.
A menina cresceu e virou escritora, mais ou menos quando foi expulsa do catecismo, bem pequena. A igreja continua quase a mesma. No dia da padroeira, agora, uma festa cheia de barraquinhas arrecada verba para a paróquia, e, apesar de ninguém mais encenar a coroação, o espetáculo cresceu bastante.
133.497 habitantes, diz o censo. Cidade pequena, deveria ser aconchegante.
O centro da cidade, com casarões abandonados e ocupados por “nóias”, mantém a arquitetura preservada da época dos barões do café. Nos bairros antes residenciais, toda praça virou ponto de tráfico ou “o corre”, como chamam agora, e a liberdade perdida de se sentar para tomar a fresca na pracinha, hoje contrasta com os muros altos dos condomínios hiper gradeados, protegidos por câmeras e rolos de fitas e serpentinas farpadas. Ali dentro, duas crianças ainda brincam de amarelinha, e talvez, talvez, apenas talvez, ainda exista uma esperança.
O romantismo bucólico e cheio de pequenas melancolias da cidade do interior ainda deve existir em alguma outra cidade por aí. Se encontrar uma, assim por acaso, como quem não quer nada, uma “Xangrilázinha” qualquer onde eu possa, ao menos, passar férias, me mande um e-mail: sonhadora@perdidanotempo.com
Para a minha, já não posso voltar.
Me emocionei. Texto lindo. Gostaria de um versão em áudio.