(Otto Mueller 1874-1930, no. 27)
A cadelinha tinha um rabo inquieto, excesso de pelo sobre os olhos e um topete que merecia uma boa tosa. Tinha um olhar de fome, remanescente do seu início naquele bairrinho de merda. Mas não era fome de comida, não. Era fome de vida boa. Desde novinha, rodava as calçadas do seu bairrinho de merda como quem fareja o próprio destino, ou melhor, o próprio rabo. Olhava as lojas do lado de fora, a cadelinha sabia que não era bem-vinda dentro delas. Seria tocada pelas vendedoras.
A cadelinha não sabia de muita coisa, mas queria aquela vida que nem nome tinha, lá de dentro do barraco onde nasceu.
Era daquelas vira-latinhas sujas que ninguém chega perto. Fedia a pelo sujo e molhado. Vez ou outra, a mandavam para o banho e tosa, e voltava parecendo cadelinha de raça, mas tinha aquela fuça nojenta de vira-latas.
Na escola, vendia o lanche pra comprar uma roupinha mais ousada. Com doze anos, já beijava tudo que era motoboy da rua só pra poder ir pra cidade de graça. Com catorze, deixou o professor de matemática meter a mão por baixo da sua saia, em troca de um oito e um trocado. Aos dezoito parecia ter trinta.
O pai trabalhava, mas não ganhava o suficiente nem para os remédios. A avó salvava a família com a criação de galinhas magrelas que criava à quirelas no quintal. A cadelinha cresceu ouvindo que mulher tem que trabalhar, mas concluiu cedo que quem tem buceta não passa fome. E ela se virou. Se virou tanto que seu próprio destino ficou de rabo pro alto, esperando a sorte chega.
Um dia, ela farejou um rastro de dinheiro. Era feio, torto, um troncho que babava pelos cantos da boca e tinha um bafo de leite azedo. Filho único de um comerciante bolsonarista, casado com uma mulher católica de cabelo loiro médio acinzentado, cheia de penduricalhos e bijuterias folheadas a ouro baixo. Se não fosse pela política pró-vida da igreja, o troncho nem teria nascido, um aborto adiado que cresceu e virou antidepressivos numa gaveta do criado-mudo.
Mas a cadelinha, ah, a vadia da cadelinha, ela viu além. Viu o carro importado, viu a casa no bairro emergente, onde sua casinha cabia na garagem e sobrava espaço, viu as demais cadelinhas do bairro das cadelinhas sentindo inveja dela ter ficado rica, viu o cofre com mais dólares guardados do que as gavetas da sua avó, cheias de novenas.
Bastou a cadelinha sacudir e levantar o rabo pro Troncho ficar de quatro.
Em dois tempos, ele estava apaixonado. Aquele fedor de sebo de corpo, misturado com perfume de catálogo, quase a fez vomitar, mas o edredom era de marca de luxo. Fechou as narinas e fez seu trabalho. Já tinha se dado a caras piores por muito menos. A cadelinha queria vida de luxo. Sabia que aquilo tinha um preço. E decidiu pagar.
Pagava toda vez que ele deitava por cima, aquela coisa mole e suada que mais parecia um defunto perfumado demais. Pagava calada, com o corpo cheio de tequila e ambição. O nojo estava na cara, mas o cartão black na bolsa. Fingia um gemido e tava tudo bem.
A cadelinha venceu na vida.
Subiu de salto 15, com aplique no cabelo e silicone nas tetas. Sorria um sorriso de lentes, emoldurado pelos lábios preenchidos, as bochechas bichectomizadas, e as unhas feitas a faziam parecer as amigas da Andreia de Maio nos anos 80. Hoje, ela janta em Paris, com seus lábios de Bartô e abana o rabo pela Champs-Élysées. E todo mundo diz: “Que cadela de sorte!”. Ninguém sabe do álcool, da náusea, do nojo. Só ela.
A cadelinha deu cria a um moleque igualmente troncho. Diferente do pai, que só nasceu por causa da igreja, o moleque só nasceu por causa do banco, da conta no banco, do futuro que ela queria garantir.
O dinheiro lhe conferia a entrada nos eventos da alta sociedade, onde, apesar de estar entre eles, jamais seria um deles. A cadelinha falava alto, escutava música ruim, usava pratos e talheres de plástico nas suas recepções, era cafona, parecia um outdoor de marcas, cheia de grandes logos que não a deixavam enxergar o quanto era ridicularizada. Pobre cadelinha rica, era isso que ela era. Fedia perfume caro e de mal gosto. Falava errado, escrevia pior ainda.
Humaninha de estimação de um paquiderme fedorento, nascida numa ninhada de outras cadelinhas que não deram a mesma sorte.
O Troncho, descobrindo um diário que ela mantinha, sabendo de todo o asco que sua cadelinha nutria por ele, não fez nada. Agora, com os olhos desvendados, via o nojo, o desprezo, o interesse, mas não fazia nada além de sentir pena de si mesmo.
Por mais que tentasse, ele não podia se livrar daquela fuça de paquiderme. Por mais que emagrecesse e se perfumasse, não perdia aquele cheiro de cebola de pizza de calabresa que emanava.
Ele tinha nojo de si, e sabia que aquela cadelinha era tudo o que ele tinha. Tudo o que conseguiria ter. Porque ele não passava de uma versão enfraquecida do pai, que, ao menos, tinha acendido na vida. Ele, nem isso tinha. Era só um bosta.
Comprou uma coleira de ouro e colocou seu nome nela, presenteando-a no aniversário de casamento. E ela deu a ele tudo o que tinha: o rabo.
E a cada noite recebia em seu cofrinho seu castigo depositado.
Maria Letícia era seu nome.
Nota da autora
Nenhuma cadelinha foi maltratada durante a escrita deste texto. A história é ficção, mas a realidade costuma ser pior, só que sem estilo. Se você se incomodou, se achou exagerado, talvez não tenha olhado direito para o mundo ao redor. Essa cadelinha é só o espelho sujo que a gente finge não ver. E sim, ela abana o rabo com lente no sorriso e silicone nas tetas, porque sabe exatamente o que quer.
Me propus a trazer para esse texto algumas influências antigas e outras recentes. O erotismo doentio, a animalização das relações humanas e a tragédia disfarçada de cotidiano do Nelson Rodrigues. A dor existencial disfarçada em frases agudas e uma personagem que compreende a própria marginalidade mas escolhe enfrentar o mundo com lucidez amarga, coisa de Caio Fernando Abreu. O retrato cru de corpos, sexo sem afeto, consumismo e vazio emocional, influência de Plataforma e Partículas Elementares de Michel Houellebecq, só conheço essa obra dele. Um pouco de Eliane Brum, Carola Saavedra, Julián Fuks e a minha observação direta dos emergentes da sociedade onde cresci.
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas, mortas, ressuscitadas, inventadas, amigos imaginários ou em estado de negação é azar ou coincidência. Os nomes, características de personagens, situações e diálogos são frutos da imaginação desta que vos fala, ainda que a realidade insista em copiá-los. Se você se viu retratado(a), recomendo uma boa autoanálise (ou um banho demorado).
Eu ri muito. Acho q entendi as referências.