Sobre o que haveria de ser mesmo o amor, ele não tinha a mínima ideia.
Sentado no banco detrás da própria vida, as coisas se conduziam da melhor forma, da forma como deveriam ser se assim não tivessem sido. Diziam que estava bem.
No jogo da vida todos os espaços do carro estavam ocupados pelos seus respectivos pinos e o avançar das casas era dito, satisfatório.
Então por que alguma coisa parecia estar, terrivelmente, fora do lugar?
Era aquele vento quente que o incomodava.
Sobre o que haveria de ser mesmo o amor, ele não tinha a mínima ideia.
O café da manhã na mesa, as coisas todas organizadas e… funcionando. O trabalho era interrompido vez ou outra por questão doméstica, mas tudo bem, havia um avatar carregando o estandarte da válvula de escape em alguma plataforma de embarque.
O trabalho, o mesmo trabalho.
O caminho, o mesmo caminho para o mesmo trabalho.
E estava tudo bem. Era sua função.
Aventurando-se entre o tédio e a rotina, sua esposa também era funcional. Uma boa funcionária, podia ganhar o retrato de funcionária do mês em qualquer lugar que trabalhasse, mesmo que fosse na própria cozinha ou cortando a grama do quintal.
Grama.
Sabia que grama pode ser sinônimo de status em muitos lugares?
A grama crescia rápido, tão rápido que dava pra ouvir.
As crianças também crescem rápido e as vezes é necessário fazer mais crianças, pra que elas ocupem espaços vazios que costumam, nesses casos, crescer mais rápido que a grama, e que as crianças.
Nesse caso, parece necessário, certo e corriqueiro que a vacuidade existencial seja ocupada por funcionalidades. Sadio talvez. Ou talvez apenas deva ser encarado dessa maneira.
De fato, é um aparato que funciona.
As pessoas passam a fazer da sua própria tragédia o seu orgulho. E quem haveria de dizer que não é assim?
Eu não.
Dizem que a felicidade reside em várias situações: família, relacionamentos, trabalho, saúde e por aí vai.
Bobagem!
Essas coisas formam um conjunto de pequenas alegrias.
São coisas que, todos podem ou não ter, nessa ou naquela proporção, com essa ou aquela configuração, sem esquecer do viés cultural que - muda - todas - as- coisas
Logo, alegria travestida de felicidade.
A felicidade, é uma quarta camada de cor.
…
Nesse exato momento, existe um beduíno sentado sobre os próprios calcanhares ao pé de uma duna, uma entre tantas no seu caminho. O mesmo caminho para outros tantos caminhos.
Sentado e preocupado com a direção do vento que sopra do oriente em direção ao Sinai. O vento quente trazendo tanta areia entre os dentes, não o incomoda, é a direção do vento que o preocupa.
Sentado, o suor debaixo das vestes o refresca, seu cheio se confunde com o dos anos e enquanto um ou outro lagarto corre duas patas, uma fata morgana ao fundo compreende-se: ajustada.
Sua mente se atém a uma única lembrança: A turista.
A turista que o viu, o viu e sorriu, sorriu e partiu. partiu e nada mais.
Enquanto montava sua tenda, no meio das areias do sempre, nunca pensou que uma coisa daquelas poderia lhe acontecer.
Pensando de novo, naquela turista. Onde ela estaria? Com quem? Como? O que estaria vestindo? Qual seria seu cheiro?
Nunca esqueceria o kajal sob os olhos, o lenço que escorregava mostrando cachos de um cabelo castanho, os dentes extremamente brancos, e unhas bem feitas mas sem esmalte.
Ele sabia sobre a direção dos ventos, sobre todas as criaturas peçonhentas, conhecia a noite fria dos dias mais quentes, e enquanto desenrolava os tapetes dentro da tenda, lembrava do bordado alinhavado no sapato de couro cru da turista, enquanto ele a ajudava a subir no seu dromedário. O toque macio de suas mãos fora a coisa mais delicada que sentiu na vida, mais que o toque da seda mais pura, e ele não sabia nada sobre ela.
Sobre o que haveria mesmo de ser o amor, ele era a mais pura das ideias encarnada.
A felicidade residia na verdade do olhar mais singelo.
Ela olhava como se tivesse algo que ninguém mais tem no mundo. E aquele beduíno que mal sabia escrever seu nome. Sabia que aquele era o tesouro mais valioso do deserto, embora não pertencesse a ele. O olhar de uma mulher que traz um amor impresso na alma.
…
Sobre a mesa, a ideia de se ter uma hipoteca para ampliar a casa parecia interessante. Um ou outro brinquedo no meio do caminho, a cama que só era arrumada em dias de visita, e as visitas que pareciam placebo. Mas tudo estava bem, estava como deveriam estar se assim não estivessem. Não estavam?
As ladeiras da cidade soavam como metáforas a serem exploradas. Mas era no centro da cidade, onde havia uma pequena padaria chamada Pitchoun, que ele ia toda última quarta-feira do mês, ia se sentava sozinho, na última mesa, à esquerda, tomava um café, escolhia algo não tinha experimentado antes mesmo achando que não iria gostar, pra manter o hábito de se surpreender, em meio à tanta rotina, a sua rotina sagrada, e esperava, sentava e esperava, como vinha esperando há tanto tempo.
Os anos haviam se passado desde o primeiro café. E aquilo era um ritual, não como um um ritual, um ritual!
Entre tantos doces e novidades, ele sempre mantinha um sem experimentar, pois quando experimentasse tudo, ainda haveria guardada uma surpresa pro final. Sua pele havia mudado, traços iam se desenhando, expressões ficando marcadas, seus cabelos ganhando outros tons, outro corte, calvície, e acima de todas as mudanças, se mantendo etérea, uma substância não mudava, e o vento quente ainda o incomodava.
Um dia, alguém se sentará à mesa, e conversarão longamente, como se os anos não tivessem passado.
Falarão sobre os ventos do oriente que sopram em direção ao Sinai, o lenço dela irá cair e mostrar cachos de um cabelo que já foi castanho. Irá sorrir com seus dentes muito brancos, assim como sorriu quando lembrou dele longe em uma viagem, desejando que ele estivesse lá. E então ela vai sorrir, sorrir e partir, partir com seus sapatos de couro cru com bordados alinhavados, partir e nada mais.
E então, sobre o que haveria de ser mesmo o amor, ele vai descobrir que sempre soube.
Era quarta-feira, a última quarta feira de um mês qualquer.